AIDS,
O EXÍLIO DA SOLIDARIEDADE

    Na história da vida de Herbert Daniel, uma triste característica o perseguia; sua inquietação, sua indignidade o levavam ao limite da morte, quer seja a política, a cívica, a física. O limite de sua inquietação, pulsão que o fazia reagir à política e interagir com ela, determinava sua eloquência vanguardista, sua marginalidade.

    Seus campos de batalha, a vida, esta nossa vida política, desbravava os caminhos da solidariedade impulsionado por sua dor, seu desterro.

    E assim foi pela quarta e derradeira vez. Sua trégua com o medo, com a dor e com o desterro durou oito anos: do momento em que teve seus "crimes" políticos proscitos em 1981, até o momento em que adoeceu, com uma infecção típica da aids, em 1989.

    Porém, mesmo neste período de trégua, entendia que aquela doença estava muito próxima da sua geração, intuindo a possibilidade de estar contaminado, como tantos de uma faixa etária que foram pegos de surpresa e não tinham o porquê de praticar sexo com segurança.

    Herbert Daniel tinha a percepção clara da dialética permissiva associada à doença que acompanhava os primeiros noticiários sobre o assunto; "peste gay", "câncer gay" e outros tantos epítetos que eram conjeturados e vendidos como um justiçamento divino a uma parcela da população merecedora de castigos e morte. Foi-se o momento dos negros retirados de suas terras e sua cultura para servir à escravidão branca, foi-se a momento dos judeus na Segunda Guerra, chegou a vez dos homossexuais, pela ação de um vírus que mirava na mais variada sorte de pecadores, representantes contemporâneos de Sodoma e Gomorra. Inimigo oculto, microscópico e incomprrensível, o vírus se instaurou na consciência pouco informada e ignorante de muitos, justificando e catalisando preconceitos e ódios, munido de seu potencial mortal, carregado com uma carga política muito mais poderosa e mortal da que a carga viral: a morte civil dos portadores do HIV.

    Sua percepção, indignação e solidariedade acerca dos acontecimentos que relacionavam casos de aids à reações de violência, preconceito e discriminação o levaram rapidamente a escrever em 1987 o romance "Alegres e irresponsáveis abacaxis americanos". Esta obra precocemente abordava a temática da aids sob o enfoque desse novo e terrível fenômeno de reações sociais diante da nova ameaça, os caminhos do desterro, defronte a construção do mito, do prenúncio cruel das reações da sociedade, impotente e capciosamente má informada ou desinformada sobre uma epidemia aterrorizante e ameaçadora.

    Sua eloquência se tornou muito mais contundente a partir do momento em que foi acometido por uma infeccção oportunista que o levou ao médico, sendo diagnosticado de maneira empírica, fria e mecânica o início do desenvolvimento de uma doença característica da aids.

    Neste momento, começa o último exílio de Herbert Daniel. Nasce o guerrilheiro da solidariedade.

    Seus últimos dois livros, Vida antes da morte e Aids, a terceira epidemia foram escritos a partir e em função desta vivência, da indignação, das reflexões advindas de sua rebeldia por não admitir a morte civil imposta ao portador do HIV.

    Sua experiência diante da frieza de um médico foi ponto de partida para a construção de seu raciocínio solidário. A experiência que denominou de "quarenta segundos de aids", tempo que teve para absorver aquela triste constatação diante da indiferença de uma medicina desumanizada, foi escrita, publicada e comentada com certa periodicidade em seus textos em jornais, participativos como em "Anotações à margem do viver com aids".

    Seguem abaixo alguns trechos do texto "Quarenta segundos de aids" publicado no livro Vida antes da morte que pode ser puxado na íntegra para o seu computador:

    ..."Mas eu não estava despreparado. Estava vivo. Vivo estou. O mais espantoso, e escrevo esta página para protestar contra isto, foi o despreparo absoluto do médico que me deu a notícia. Este sim. Ilustre representante de uma medicina fóssil que tem mais de terrorismo do que de ciência, não está preparado para lidar com pessoas, doentes ou não; está preparado para lidar com aparelhos, bactérias, tortura e assassinato...

    ...Fui procurar, em emergência, um "médico" (as aspas servem para não ofender outros dignos profissionais, como os que tão solidariamente me atenderam posteriormente). Não o conhecia, mas tive indicações de sua "competência técnica". Erro crasso! A competência técnica de um médico é um humanismo, não um treinamento de reflexos condicionados...

    ... Ele voltou, mandou que me vestisse e me comunicou em três frases que eu tinha uma pneumonia por Pneumocystis carinii, "indício seguro de uma imunodeficiência". Iria me dar o medicamento (o que fez, mas em doses equivocadas), depois eu iria fazer o teste para comprovar a "outra doença" (como dizia eufemisticamente) que me levava a ter a pneumonia...

    ...(Alguns dias depois, em circunstâncias bastante diferentes, confirmou-se que eu tinha Aids, mas a razão de minha crise era uma tuberculose ganglionar. Muito provavelmente nunca tive a pneumonia que ele diagnosticou. Muito provavelmente ele "viu" a P. carinii através dos óculos da minha homossexualidade, como tantos "médicos" vêm fazendo.)

    Horror - foi exatamente o que senti. Tinha diante de mim uma máquina de diagnóstico, uma aparelhagem médica desumanizada que poderia, de repente, me prender em suas engrenagens e me levar a algo bem mais terrível do que a Aids: à indignidade de uma morte vazia, hospitalar, sequestrada de mim como experiência vital. Temi sobretudo o futuro que aquela monstruosidade me previa. Sabia que iria estar sujeito a uma série de infecções, e tive medo de ter, por causa disso, de ficar sujeito ao totalitarismo dessa geringonça médica dirigida por essa corja de especialistas da desumanização.

    Tenho Aids. Esta é uma experiência corporal da qual ainda tenho muito a falar. Mas que não tem nada a ver com a doença que tive ali, diante daquele "médico".

    Saí daquele consultório transtornado. Quarenta segundos de Aids! Escapei. Cláudio, meu companheiro, me esperava aqui fora. Meus amigos me esperavam. A vida me esperava. E livrei-me daquela pavorosa doença que me matou por quarenta segundos.

    Escapei. Com a convicção de que é preciso libertar desse jugo outros doentes."

    Herbert Daniel, na sequência do texto, narra, alguns dias após a consulta, durante um mal estar noturno que o deixou insone, como transcorreu o momento de uma intensa e profunda reflexão que o modificou, o despertou para o mundo real, de novas possibilidades para o desafio da aids. Naquele momento, após um comício noturno e inesperado que acordou Cláudio, concluiu entre outras preciosas reflexões:

    ..."a maneira como a epidemia de AIDS vem sendo tratada no Brasil vai um dia fazer parte do museu da estupidez humana, onde o bestialógico da aids tem inúmeras instalações. A falta de conhecimento específico sobre a doença, associada a idéias recebidas de manuais generalistas, mais uma dose de arrogância, tudo isto matou muita gente. E não foi de AIDS. Foi sim de uma condenação à morte civil que atinge soropositivos ou não, que contamina toda a população brasileira.

    A ausência até hoje de uma estratégia nacional integrada de combate à epidemia, substituída por iniciativas deslocadas e impertinentes, como campanhas terroristas ou bobinhas na televisão, e mentiras ditas em tom acadêmico, tem produzido os mais monstruosos efeitos colaterais. Em suma, o pior deles é a morte civil, a ausência de direitos básicos à vida e à saúde"...

Trecho da musica "Aqui e agora" (Gilberto Gil"):

Trecho da musica "Aqui e agora" (Gilberto Gil"),
escolha para fundo musical da secretária eletrônica.


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