Brasil, ame-o ou deixe-o. Herbert Daniel desembarcou na França
com o amigo Cláudio Mesquita em 8 de setembro de 1974. O exílio de fato. Aqui
chega o fim da clandestinidade. Das fugas, dos cercos. Reencontra-se com
Ângelo, formado em psicanálise. Imaginavam um retorno breve, dizem que
exílio por exílio, lá na terra deles sentiam-se melhor. Foi difícil
convencê-los, mas ficaram no exterior por um argumento forte: ao voltar a
militância dentro do Brasil, caso caíssem nas mãos da repressão, todos os
companheiros que estão presos vão de novo ser torturados, nas acareações
com vocês. De repente tomaram consciência do risco de serem presos, mortos,
de envolverem outras pessoas. Acharam a França muito chata, se instalaram
em Portugal, em plena revolução.
Em Portugal, retomada da vida, não antes: transou com Cláudio,
primeira vez, sim, amou Cláudio e amou muitos outros. Coincidências: onde morou em Portugal
era uma ladeira forte: Rua da Saudade. Nesta inclinada Saudade, soube que
não mais poderia ficar em Portugal. Não mais podia prosseguir como durante
os calmos quatorze meses, apenas dizendo "sou eu" e confiando na confiança
que tinham nele e em seu tropical linguajar. Não tinha documentos que
legalizasse sua situação no país. Deveria achar um canto para exilar-se onde
pudesse comprovar, de papel passado, quem era, e exilado.
Mudam para Paris em janeiro de 1976, onde se tornou oficialmente um
refugiado político: um título de viajem da ONU garantia sua liberdade de ir e
vir pelo mundo, com um senão. Anotado no passaporte: válido para todos os
países, salvo o Brasil.
Em Paris, "recusou-se a decidiu não mais acompanhar as reuniões dos
ex-militantes exilados, nostalgia, reinvindicações de glórias
carregadas de um ligeiro cinismo de encontro de velhos combatentes,
veteranos. A vida no exterior não modificava os principais problemas dos
grupos de esquerda. Pelo contrário, acentuava o dogmatismo, cristalizava o
sectarismo e o caráter de confraria onde antigas questões não foram
resolvidas e as novas eram imcompreensíveis, porque não formuladas".
Não lhe interessava fazer política assim. Estava "decidido a encontrar
soluções para certos problemas que a coerência lhe impedia de chamar pessoais,
mas que a prudência lhe aconselhava a não chamar políticos. Sendo, porém,
políticos , pessoais e intransferíveis", resolveu que precisava resolver
outros exílios: a homossexualidade. O seu exílio
sexual. Vivenciou sua linguagem, suas regras, de um outro exílio. Desde
sempre se dava conta de uma armadilha. Escapou de uma "seita", a esquerda
remanescente, e não iria cair num gueto. Herbert Daniel, através de suas
análises de dentro do mundo homossexual, elaborou e introduziu na esquerda
brasileira um discurso anacrônico, inédito e lúcido da questão homossexual.
Em 29 de agosto de 1979 é aprovada a Lei da Anistia que anistiava
os opositores do regime militar por "crimes políticos", bem como os oficiais
militares por inúmeras violações aos direitos humanos. Com a decretação da
lei, o então Presidente João Baptista Figueiredo inicia legalmente o processo
de redemocratização, resultado da pressão de entidades do movimento
estudantil e sindical, organizações populares, OAB e da igreja católica.
Herbert Daniel, como sempre, escaparia. Desta vez da anistia do governo.
Ficaria de fora. Foi um dos últimos exilados a voltar para o Brasil.
Proscrito. "Aguardo diante dos portos que tenho fechados, neste resto de
exílio que alonga ainda mais uma certa solidão que sempre me pareceu
destinação inevitável e temida. Um dos últimos no exílio, já quase não se
fala em anistia - e ela não ouve, estou aqui que não me deixo mentir.
Liberdade condicional, como todo mundo, enquanto não se fizer a condição de
liberdade..."
Herbert Daniel voltou ao Brasil em 9 de outubro de 1981. Cláudio voltou dois meses
antes. Dois meses pesados de absoluta solidão. Saudades... saudades de
sua evidência, Cláudio, aflitiva saudades de tantas iminências e
reminiscências. Acarinhado por todos. Medo, não o físico, enterrado num
passado anistiado. Receio, o de não encontrar interlocutores. Monólogar numa
língua estrangeira e incompreensível.
Trecho da música "O bêbado e o equilibrista" (João Bosco - Aldir Blanc)
- Elis Regina